Paredes do medo: como a violência doméstica habita os lares brasileiros

Por Jessica Soares

Depois de quase quatro anos em discussão, entrou em vigor no dia 27 de junho de 2014 a Lei Federal nº 13.010, chamada Lei Menino Bernardo. Conhecida anteriormente, de forma pejorativa, como “Lei da Palmada”, ela proíbe o emprego de castigo físico e de tratamento cruel ou degradante contra meninos e meninas. O documento altera o texto do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), coibindo qualquer ação de natureza disciplinar ou punitiva aplicada com o uso da força física que resulte em sofrimento físico ou lesão. Proíbe, também, condutas que humilhem, ameacem gravemente ou ridicularizem meninos e meninas.

faixa etária

A violação dos direitos não se limita aos abusos que deixam marcas na pele. Pelo estabelecimento do medo e da submissão, toda violência física está carregada de violência psicológica e seus efeitos no desenvolvimento podem ser muitos – dificuldades no aprendizado, incapacidade de construção de relações interpessoais, comportamentos negativos, baixa autoestima e humor depressivo são exemplos citados em “A (in)visibilidade da violência psicológica na infância e adolescência no contexto familiar,” artigo escrito por Cecy Dunshee de Abranches e Simone Gonçalves de Assis, da Fundação Oswaldo Cruz. Bernardo Boldrini, garoto de 11 anos cujo nome rebatizou a lei que altera o ECA, foi encontrado morto no último mês de abril e seu pai e sua madrasta são os principais suspeitos do assassinato. Pouco tempo antes, Bernardo havia procurado ajuda no Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente de Três Passos (RS), onde relatou os xingamentos e o abandono afetivo que vivenciava.

Onde mora a violência

As violações que acontecem no cotidiano das relações familiares podem ser chamadas de violência doméstica ou intrafamiliar. Enquanto o primeiro termo se refere ao espaço em que ocorre a violação – podendo incluir outros membros do convívio do lar – a violência intrafamiliar se refere aos abusos ocorridos entre membros da família, tanto no ambiente doméstico quanto público. No Brasil, a maior parte da violência doméstica é também intrafamiliar – pais, mães, membros da família ou responsáveis são os principais agressores.

Barreiras do silêncio

Em 2013, o serviço Disque 100 – Disque Denúncia da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República – registrou 124 mil relatos de violência física, psicológica e sexual contra crianças e adolescentes. O número elevado, no entanto, ainda está em descompasso com a dimensão do problema: dados de 2009 da Sociedade Internacional de Prevenção ao Abuso e Negligência na Infância indicam que, anualmente, 12% dos 55,6 milhões de crianças menores de 14 anos sofrem alguma forma de violência doméstica no Brasil. Diariamente, estima-se que 18 mil meninos e meninas sejam vítimas de abusos no lar.

A diferença entre os números lança luz sobre as violações caladas entre quatro paredes. “É uma questão histórica. Vivemos um processo de colonização marcado pela escravidão e pela submissão dos povos originários. Na nossa história, a disciplina e o poder foram impostos a partir da força física”, afirma Márcia Oliveira, coordenadora da campanha Não Bata, Eduque!, iniciativa da rede de mesmo nome que tem como objetivo desenvolver ações que promovam reflexão sobre o uso dos castigos físicos e humilhantes. Em sua avaliação, o maior desafio da rede hoje é construir o entendimento de que esses abusos são uma violação de direitos. “Como a violência faz parte do processo de criação, passado de geração em geração, as pessoas tendem a achar natural. Você reproduz o que conhece e viveu. Falta esclarecer que disciplina e limites não são sinônimos de castigo físico”, completa.

Pelo menos um em cada cinco brasileiros sofreu punições físicas regulares na infância, segundo pesquisa realizada pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP). Ao todo, 70% dos 4.025 entrevistados declararam ter apanhado quando crianças. Os resultados, divulgados em 2012 como parte da Pesquisa Nacional, por Amostragem Domiciliar, sobre Atitudes, Normas Culturais e Valores em Relação à Violação de Direitos Humanos e Violência, apontaram que, para 20% dos entrevistados, o castigo era recorrente e ocorria ao menos uma vez por semana.

Para o integrante do NEV, Renato Alves, atitudes abusivas não estão presentes apenas na maneira como tratamos as crianças – são também uma expressão da maneira como lidamos com a violência do nosso cotidiano. “Nós temos, por exemplo, a polícia no Brasil, que usa a agressão como elemento cotidiano para regular a ordem. Como falar com um pai para não bater no filho, se o Estado faz isso com os cidadãos e é considerado ‘legítimo’?”, argumenta.

Apesar de o Estatuto da Criança e do Adolescente ter sido instituído em 1990, meninos e meninas nem sempre são vistos como sujeitos com direitos civis, humanos e sociais que devem ser tratados como prioridade absoluta. “Desde que começou a discussão sobre a proibição de castigos físicos contra crianças [suscitada pelo PL nº 7672/2010] foi uma comoção nacional. O que mais se escutava era ‘puxa, nós vamos ter fiscais aqui em casa agora’. Na realidade, o que se discute não é o Estado interferir na vida privada ou na educação dos filhos. A questão é que os filhos não são propriedades dos pais”, afirma a psicóloga judicial e coordenadora técnica da Vara Cível da Infância e da Juventude de Belo Horizonte, Rosilene Barroso da Cruz.

Além de ocorrerem em ambientes que deveriam ser de acolhimento e proteção, na maior parte dos casos de violência doméstica denunciados, os violadores são justamente aqueles que têm o dever de proteger e cuidar de meninos e meninas. Um levantamento baseado em informações de 83% dos conselhos tutelares de todo o país revelou que pais e mães são responsáveis por metade dos casos de violações aos direitos de crianças e adolescentes. Os números do Sistema de Informação para Infância e Adolescência (Sipia) do governo federal indicam que, dos 229.508 casos registrados desde 2004, em 119.002 os autores foram os próprios pais (45.610) e mães (73.392).

suspeito e vítima

Por ser um espaço de interlocução com a família, a escola pode ter papel importante, não só para a promoção de mudanças nos hábitos familiares, mas também para o rompimento do silêncio. Pelo contato próximo e diário com as crianças, os educadores podem ficar atentos aos sinais de que há problemas no lar – mudanças de comportamento, presença de marcas no corpo ou faltas sem justificativa, por exemplo.

Cuidados e afetos negligenciados

Desde 2011, denúncias de negligência recebidas anualmente pelo Disque 100 ultrapassam o número de delações de violência física e psicológica. Em 2013, o serviço recebeu mais de 90 mil ligações sobre o tema, a maioria delas relacionadas à falta de amparo [veja mais no infográfico ao final do post]. Embora raramente denunciado, o descuido pode também se manifestar no enfraquecimento dos laços afetivos. “Costuma-se dizer que uma criança, quando está fazendo muita bagunça, está querendo chamar atenção. Mas do que é que a criança precisa? De atenção”, afirma o pesquisador do NEV, Renato Alves. Para o cientista social, a violência física contra a criança é só a ponta do iceberg de uma série de violações às quais a criança está submetida. “Fazer o exercício cotidiano de encarar a criança como sujeito de direitos implica também ter tempo para a criança – tempo que, em nosso contexto social, é cada vez menor. E aí eu pergunto: isso também não é violento?”, questiona.

Para Márcia Oliveira, esse contexto pode estar ligado ao não reconhecimento, por parte do adulto, da responsabilidade que tem com relação ao desenvolvimento da criança e do adolescente. Destaca ainda que a responsabilidade nem sempre é vista de forma equitativa entre os gêneros. Para a coordenadora da rede Não Bata, Eduque!, a cultura de responsabilizar prioritariamente a mãe pela negligência precisa ser problematizada no trabalho realizado junto às famílias e à sociedade. Em pesquisa realizada pelo Instituto Promundo – organização brasileira que busca promover masculinidades não violentas e relações de gênero equitativas –, apenas 39% dos homens entrevistados afirmaram participar do cuidado diário dos filhos. Na percepção das mulheres ouvidas, esse número é ainda menor: mães reportaram participação dos pais em apenas 10% dos casos. Com o objetivo de incentivar a presença masculina na criação, o Promundo lançou em 2012 a campanha Você é meu pai (voceemeupai.com). A iniciativa parte do entendimento de que a participação masculina em tarefas de cuidado e na paternidade são decisivas para a redução da violência contra mulheres e o empoderamento delas no mercado de trabalho e também para a formação de crianças com atitudes equitativas no futuro.

Sexo

Para Ariel de Castro Alves, fundador da Comissão Especial da Criança e do Adolescente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e ex-Conselheiro do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), faltam mecanismos legais para a punição efetiva de casos de descuido. “Não há uma tipificação penal da negligência, nem no ECA, nem no Código Penal. Dessa forma, ninguém pode ser punido [por atos de negligência], exceto se a situação se configurar como maus-tratos ou abandono de incapazes, crimes elencados na legislação penal”, explica. As denúncias de descuidos são encaminhadas aos conselhos tutelares, que devem investigar a veracidade da delação e garantir o cumprimento dos direitos da criança e do adolescente por meio de atendimento e aconselhamento de pais ou responsáveis e da aplicação das medidas previstas no artigo 129 do ECA.

Descaminhos da responsabilização

A obrigação de garantir que crianças e adolescentes cresçam em ambiente livre de violência não é apenas dos pais. Está no artigo 4º do ECA: é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar a efetivação dos direitos de meninos e meninas. O artigo 13 do Estatuto institui ainda a obrigatoriedade de denunciar suspeitas de casos de violência doméstica. No entanto, a subnotificação de casos no Brasil é um dos grandes obstáculos para a responsabilização do agressor. É o que a psicóloga judicial Rosilene Barroso da Cruz aponta na tese Violência doméstica contra crianças e adolescentes: os (des)caminhos entre a denúncia e a proteção. “A situação de subnotificação dos casos de violência contra crianças e adolescentes costuma estar associada não apenas a fatores internos da dinâmica familiar, mas a fatores externos, como pouca divulgação das formas e dos órgãos responsáveis por receber as denúncias e falta de informações sobre o desfecho dos casos denunciados”, avalia. Se o silêncio não é rompido, permanece a invisibilidade, o que faz com que crianças e adolescentes sejam vitimizados diversas vezes.

Por meio de denúncias, a rede de atenção à infância e os atores do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente são acionados, contribuindo para tornar visíveis as violações de direitos. A partir da verificação e da comprovação de suspeitas delatadas, o conselho tutelar pode adotar medidas para acompanhamento e orientação de familiares e requisitar serviços públicos para a proteção de meninos e meninas. O conselho é também responsável por encaminhar ao Ministério Público e às autoridades judiciárias os casos em que haja infrações penais ou administrativas.

Por se tratar de violências que nem sempre deixam marcas na pele e que acontecem dentro do lar, a comprovação das denúncias também é um desafio. “Geralmente fica a palavra da vítima contra a do acusado. Dificilmente [casos de violência doméstica] têm testemunhas, já que são crimes ocorridos em ambiente privado, intrafamiliar. Além disso, os órgãos que deveriam verificar têm pouca estrutura, como as delegacias especializadas da criança e do adolescente [apenas 6,3% do total das 1.347 varas da infância e da juventude existentes no país têm competência exclusiva para julgar matérias sobre a infância e a adolescência] e os conselhos tutelares, que também não contam com as mínimas condições de trabalho e falta capacitação”, afirma Ariel de Castro Alves.

Para dar voz

DE OLHO NO MUNDO | A animação De olho no mundo, realizada pela rede Não Bata, Eduque! em parceria com o Instituto Noos, foi criada a partir de um roteiro pensado por meninas e meninos. No vídeo, os pequenos apresentam alternativas ao uso de castigos físicos, reconhecem a importância de regras e limites e contribuem para a solução pacífica de conflitos. Assista aqui.

RODAS DE CONVERSA | O livro Rodas de Diálogo sobre Educação Positiva, elaborado pela rede Não Bata, Eduque!, reúne experiências de promoção de diálogo entre crianças, adolescentes e adultos para o enfrentamento aos castigos corporais e ao tratamento degradante. A publicação apresenta a metodologia usada e incentiva organizações a replicarem o método. Para ler, clique aqui.

COM A PALAVRA, OS PEQUENOS | A história de Lucas, protagonista do livro Vento no Rosto, foi criada por 12 meninas e meninos da comunidade da Maré (RJ). Por meio do personagem, eles imaginam uma educação sem violência e refletem sobre questões como obediência, punição e deveres. O projeto foi desenvolvido pelo Instituto Promundo com financiamento da organização internacional Save the Children.

infográfico

[Esta reportagem foi publicada na terceira edição de Rolimã (página 32). Acesse a revista na íntegra aqui.]

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