Publicidade combina com criança? O que muda com a Resolução do Conanda

No intervalo entre um desenho e outro na TV, os vídeos começam de forma divertida. Meninos e meninas manipulam brinquedos que parecem ser a sensação do momento. Enquanto as garotas, encantadas, penteiam os cabelos da mais nova boneca, que também tem um carro e uma casa cor-de-rosa, os brinquedos dos garotos se transformam de carros em super-heróis e vice-versa. Ao fundo, uma música empolgante torna a brincadeira ainda mais mágica. Tudo dura poucos minutos, mas, ao fim do comercial, as crianças já estão fisgadas.

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Quem nunca viu, na TV, uma propaganda como a descrita acima? E qual pai ou mãe já não teve que explicar a uma criança chorosa que ele não podia comprar determinado brinquedo, enquanto no dia seguinte o comercial voltava a mostrar o quão interessante aquele carrinho ou boneca é? Foi pensando nessa situação que o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) publicou, em março deste ano, a Resolução nº 163, que considera abusivos determinados tipos de propaganda voltados para esse público.

O objetivo da resolução não é apenas estabelecer uma crítica à publicidade dirigida à criança. Ao usar o termo “abusivo”, o órgão pretende que os comerciais em questão sejam tirados de circulação, uma vez que o Código de Defesa do Consumidor estabelece, no artigo 37, que “é proibida toda publicidade enganosa ou abusiva”. Dessa forma, pais ou organizações poderiam, de acordo com o Conanda, entrar na Justiça pedindo a retirada desses materiais de circulação. A medida vale para praticamente todos os meios de veiculação, seja televisão, rádio, anúncios impressos, banners, internet ou embalagens de produtos, além de ações por meio de shows e apresentações. Desde a publicação da resolução, um intenso debate se estabeleceu envolvendo publicitários, pais, defensores dos direitos da infância, produtores de materiais infantis e veículos de comunicação.

Apesar do rigor em relação aos comerciais, o Conanda frisa que a resolução não proíbe nenhum tipo de propaganda. “Não há a palavra ‘proibido’ na resolução. A ideia é regular o que é abusivo no que diz respeito ao marketing”, explica a presidente do órgão, Miriam Maria José dos Santos. A ideia, explica ela, é estabelecer um novo paradigma sobre a relação entre crianças e adolescentes e a indústria da publicidade.

De acordo com o artigo segundo da Resolução nº 163 do Conanda, são abusivos os materiais publicitários voltados para as crianças que utilizarem:

1) Linguagem infantil, efeitos especiais e excesso de cores;
2) Trilhas sonoras de músicas infantis ou cantadas por vozes de criança;
3) Representação de criança;
4) Pessoas ou celebridades com apelo ao público infantil;
5) Personagens ou apresentadores infantis;
6) Desenho animado ou de animação;
7) Bonecos ou similares;
8) Promoção com distribuição de prêmios ou de brindes colecionáveis ou com apelos ao público infantil;
9) Promoção com competições ou jogos com apelo ao público infantil.

Atenção especial

De acordo com o Instituto Alana – um dos parceiros do Conanda na articulação da nova resolução –, as crianças, em especial, não podem ser tratadas da mesma maneira que os adultos no que diz respeito à relação com o consumo. “Esses meninos e meninas são pessoas em fase de desenvolvimento, e merecem especial atenção, do ponto de vista da formação psicológica. E a publicidade direcionada a eles viola alguns direitos, como o de liberdade de escolha. As crianças são consideradas por nós como seres hipervulneráveis na relação de consumo, porque não conseguem se defender sozinhas desse conteúdo”, afirma a advogada do Instituto Alana, Ekaterine Karageorgiadis.

E o que poderia acontecer com quem, apesar de não ter ainda muita malícia para entender o caráter comercial da propaganda, é exposto a essas mensagens durante várias horas por dia? Algumas das consequências apontadas por representantes do Conanda e do Alana e por especialistas em comportamento infantil são o consumismo e a erotização precoces. “Acho que existe sim a questão da sexualidade, uma tendência de deixar a criança mais precoce do que ela é”, afirma a neuropsicóloga e doutora em psicologia escolar pela USP, Edyleine Benczik.

A alimentação de quem está em fase de desenvolvimento é outra preocupação. Propagandas ou o uso de personagens infantis na embalagem de alimentos gordurosos ou com excesso de açúcares têm sido apontados como um dos fatores que podem contribuir para a obesidade infantil. Tanto que, em Florianópolis, a Câmara dos Vereadores aprovou uma lei que proíbe a venda casada de brinquedos e lanches gordurosos, como o McLanche Feliz, do McDonald’s. Em Belo Horizonte, um projeto semelhante chegou a ser aprovado, mas foi vetado pelo prefeito Márcio Lacerda (PSB). No Senado, há pelo menos três projetos de lei que tratam sobre o tema, proibindo a distribuição de brindes na comercialização de alimentos, inclusive para adultos.

Controle dos pais ou pais no controle?

Mas e em relação à comercialização de brinquedos? É indiscutível o fato de que o filão infantil constitui uma grande fonte de renda para muitas empresas. De acordo com dados da Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos (Abrinq), em 2012 o setor faturou R$ 3,87 bilhões. Qual é o personagem de quadrinhos ou de desenhos animados que não possui sua própria linha de produtos? Muitos pais, inclusive, contratam empresas para elaborar festas temáticas de aniversário, com a decoração do super-herói favorito do filho. Isso além de comprar cadernos, mochilas, fantasias e até alimentos com os personagens. Afinal, tendo dinheiro, que pai não quer agradar o seu filho, principalmente se a criança resolver fazer uma cena no meio do supermercado?

Essa é uma das questões centrais da Resolução nº 163. Quem decide o que deve ser consumido pela família, os pais ou as crianças? Se quem detém o poder de compra são os adultos, por que não fazer a publicidade voltada para eles? “É o adulto que tem discernimento para dizer o que precisa, o que tem que comprar. A criança não tem esse discernimento, tudo o que ela vê, ela quer”, afirma Miriam, do Conanda. Na visão do Conselho, a publicidade de produtos destinados às crianças deveria ser direcionada exclusivamente aos pais. Mas a Associação Brasileira de Agências de Publicidade (Abap) argumenta que não é possível simplesmente desconsiderar o público infantil. “Imaginar que crianças abaixo dos 12 anos não sabem ou não têm condições de se manifestar a respeito de seus desejos pessoais é um contrassenso. A criança está em fase de desenvolvimento e sabe, pode e deve se expressar. Além disso, a orientação das crianças começa em casa e é de fundamental importância que os pais e responsáveis as orientem quanto ao que pode ou que não pode”, afirma o consultor jurídico da Abap, Paulo Gomes de Oliveira Filho.

Se alguns acreditam que cabe aos adultos estabelecer os limites do consumo, outros argumentam que é difícil para os pais ficarem do lado oposto à enxurrada de propagandas às quais as crianças estão expostas. “A criança assiste desenho na televisão por pelo menos quatro horas durante o dia. E isso é desigual em relação ao tempo em que as famílias ficam com elas e ao tempo de educação. Além disso, essa formação educativa ainda é algo muito restrito em termos de classes sociais. Muitas pessoas estão sujeitas à formação educacional a partir de um único veículo, a TV. Não é como em classes mais ricas, nas quais a criança tem acesso ao livro, ao cinema, à escola de qualidade”, argumenta o doutor e especialista em psicologia educacional Herculano Campos, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

O raciocínio de Herculano suscita uma outra questão: é possível “blindar” as crianças dos apelos do consumo? Edyleine Benczik acredita que não. “Os estímulos vão chegar. Mesmo que os meninos não vejam televisão. Se a família vai ao supermercado, os filhos veem o brinquedo mais caro, o amigo vai ter um brinquedo mais legal e vai querer mostrar. Ao longo do tempo as crianças vão ter que lidar com a frustração, é uma questão real. Eu entendo que isso é uma questão dos valores da família”, afirma a professora da USP.

Caminho do meio

Se a publicidade e os personagens de desenho têm tanta influência no mundo infantil, seria possível torná-los aliados dos pais? E se esses elementos publicitários fossem usados para que as crianças consumissem alimentos mais saudáveis, pensassem sobre a conservação do meio ambiente ou desafiassem preconceitos arraigados? Uma das críticas à Resolução nº 163 é a de que, ao ser tão abrangente, a norma minaria também as boas iniciativas. Um desses pontos foi colocado pela filha de Maurício de Sousa, criador da Turma da Mônica e um dos maiores críticos da restrição à propaganda infantil, em entrevista ao jornal O Globo.

Segundo Mônica de Sousa, que também é diretora comercial da Maurício de Sousa Produções (MSP), a resolução, além de “alienar” as crianças, estaria inviabilizando a vinculação de personagens infantis a produtos saudáveis, como as maçãs e cenouras da Turma da Mônica, que são vendidas nos supermercados. Ela afirmou também que, com a retirada de circulação de anúncios e produtos com os personagens, tanto a MSP como outras empresas que comercializam produtos infantis iriam sofrer impactos financeiros. Hoje a Turma da Mônica estampa milhares de produtos, que vão de fraldas a cadernos, passando também por produtos não tão saudáveis, como macarrão instantâneo e alfajor. A reportagem solicitou uma entrevista com um representante da MSP, mas a assessoria afirmou que a empresa não falará mais sobre o tema com a mídia.

Afinal, a Resolução nº163 vale como lei?

Uma das grandes polêmicas em torno da norma editada pelo Conanda é a dúvida sobre se a Resolução nº 163 tem força de lei, o que obrigaria que determinadas propagandas fossem retiradas de circulação. Para a advogada do Instituto Alana, Ekaterine Karageorgiadis, não há dúvidas do poder normativo do Conanda. “O Conselho tem caráter deliberativo e formulador de políticas públicas. Não se pode questionar a validade dessa resolução. Outras normas emanadas, por exemplo, pelo Conselho Nacional de Trânsito (Contran), são respeitadas. Por que as do Conanda não seriam?”, argumenta.

Já o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) tem outra postura sobre o tema. Os representantes não se pronunciam sobre o assunto, mas documentos elaborados pela instituição dão a entender que o Conar discorda da Resolução nº 163. De acordo com levantamentos feitos pela entidade, de 298 casos abertos no órgão para avaliar comerciais voltados para crianças entre 2006 e 2012, 186 terminaram com penalização do anunciante e da agência, o que seria indicativo de que o órgão já é suficientemente atuante nesse setor. A posição do consultor jurídico da Abap, Paulo Gomes de Oliveira Filho, é a de reforçar o papel do Conar. “As agências de publicidade, assim como os anunciantes, têm se esmerado em atender as disposições do Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária, que é mais rigoroso do que o próprio Código de Defesa do Consumidor”, afirma.

Mas, juridicamente, o que vale? Na verdade, nenhum dos dois. De acordo com a professora de direito constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Ana Paula de Barcellos, conselhos como o Conanda só podem legislar sobre aquilo que for estabelecido em lei. “Tudo dependerá da lei que os criou e das competências que receberam da lei. Às vezes a própria lei prevê que, além de regulamentar a sua execução, determinados assuntos serão disciplinados de forma específica por algum órgão. Esse é o caso do Código Nacional de Trânsito (art. 12) que atribui várias competências normativas ao Contran”, explica.

Ou seja: para o Conanda poder legislar sobre a abusividade da publicidade infantil, era preciso que essa função estivesse estabelecida na Lei federal nº 8242, de 1991, que criou o Conselho, ou no Código de Defesa do Consumidor. No caso do Conar, a professora da UERJ explica que “o órgão não é uma entidade estatal. Ele é um organismo privado e de autorregulação, de filiação voluntária e cujas decisões são cumpridas ou não pelos seus membros também voluntariamente”. O que significa que não há obrigação jurídica de um anunciante retirar seu conteúdo de circulação, caso não seja filiado ao Conar.

Apesar disso, tanto as normas elaboradas pelo Conar, como aquelas feitas pelo Conanda marcam posições importantes no que diz respeito aos valores aceitos pela sociedade em relação à publicidade infantil. No caso de um processo judicial, é aceitável que um advogado ou promotor faça referência ao que foi editado pelas instituições, como forma de reforçar um ponto de vista.

 [Esta reportagem foi publicada na terceira edição de Rolimã (página 42). Acesse a revista na íntegra aqui.]

Fonte: Oficina de Imagens

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