Olhe bem para Natanael, 17. Agora explique para dona Marina ele ser assaltante de banco

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Ele estava com bermuda azul, de brim, e uma etiqueta escrito Mido. Estava de costas e parecia meio jogado entre a dezena de corpos que se espalhavam pela foto. Foi essa é visão que fez Marina Lima ter certeza que o neto Natanael era um dos doze executados da Vila Moisés, periferia de Salvador, no Cabula, madrugada de 6 de fevereiro, uma sexta-feira antes do carnaval. Ela mesma tinha costurado a etiqueta na bermuda, aliás, como fazia com as cuecas para dar a impressão de serem de grife.

O corpo, ela só pôde ver no sábado, horas antes de enterrar o menino de 17 anos e que, se não tivesse sido executado com uns nove tiros, estaria, no dia anterior dando entrada na documentação para ser menor aprendiz. Encontrou o braço direito com fratura exposta e o pescoço mole, como se tivesse sido torcido. Contou nove perfurações, nas costas, nas pernas. A versão oficial: Natanael estaria no meio de uma quadrilha pronta para explodir e arrombar um banco em Salvador e que teria atacado, a tiros, guarnições da polícia de choque baiana, a temida Rondesp. A versão de testemunhas: Natanael, o menino franzino e espigado, ponta esquerda cobiçado por donos de times amadores, de canela fina cobiçada por zagueiros maldosos foi arrastado do campo de futebol quando tinha ido buscar uma pizza para a namorada. Arrastado por um trajeto em que deixou cair a sandália em um local e o boné a pelo menos 500 metros de distância.

Foda-se o jornalismo canônico e sua conversa fiada de que para um fato há duas versões. Não há duas versões para esse fato, apenas o choro de dona Marina, envergada em sua mesa de costura, 13 dias após perder Natanael, o neto que “pegou para cuidar” quando tinha 13 dias de nascido. Se outra versão houvesse seria a contada pelos jovens negros que se recusariam a ser cordeiros no carnaval e ganhar R$6 a cada 15 cervejas vendidas. E não vai ser contada porque eles não podem mais vomitar versões pelos buracos de bala na nuca, nas costas, no peito.

No vídeo abaixo, o choro dolorido de dona Marina. “Ele que dormia comigo, que fazia minhas coisas, cuidava de mim, me dava carinho, é meu bebezinho, o amor da minha vida. Sem ele, não tenho vontade de nada”.

O pedreiro que morreu em assalto

Na terça-feira, 48 horas antes de morrer, ele tinha dormido com a namorada, “menina direita de família, que trabalha em pizzaria”, no quarto com lâmpada queimada colado ao cômodo onde a avó dorme em um colchão úmido e escuro junto com o casal de irmãos mais novos de Natanael. “Eu sou liberal e preferia que ele ficasse aqui do que num mato, porque motel ele não tinha idade e nem dinheiro para ir”, diz Marina.

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Na noite seguinte, o jovem casal não passou a noite juntos e na madrugada de quinta para sexta, Marina achou que ele tinha ido pegar a pizza para comer na casa da namorada. Às 6h, recebeu telefonema de outro filho perguntando se Natanael estava em casa. Não tinha percebido a confusão na madrugada. Ela saiu à procura e recebeu da dona do bar o boné do menino, encontrado pelo chão. A partir daí, nem trocou de roupa para ir até o Hospital Roberto Santos, também no Cabula, perguntando, em uma peregrinação de cortar o coração, se alguém podia informar se havia algum menino Natanael entre os mortos. O inferno só estava começando para dona Marina, que perdeu o filho Gideon Oliveira Costa ,sete anos atrás pelo tiro de um assaltante na Barra. Gideon era pedreiro e pai de Natanel.

Uma história para ser esquecida

Essa era uma história toda programada para ser esquecida depois do carnaval. Doze mortos no Cabula trocados pelos três mortos no circuito, que terminaram virando só dois. Trocados pela apendicite do artista Márcio Victor. Trocados pela apoteose de Igor Kannario. Carnaval em que o Camarote mais caro de Salvador fatura R$74 milhões (quase 3 vezes mais do que a própria prefeitura) pagando R$53,63 pelo metro quadrado do espaço público, enquanto ambulantes negros pagam R$124,06 por uma licença para trabalhar e divulgar gratuitamente duas cervejarias. E outros negros sem licença têm 1.200.000 latinhas de cerveja apreendidas e que agora só podem ser retiradas pagando R$1 por cada unidade, que custou menos de R$0,70. Essa era uma história para ser esquecida depois deste carnaval.

Garganta travada, vômito

“Desde o dia 6, que Natanael morreu, eu não como mais. Quem me deu comida foram os vizinhos”. Dona Marina não tem dinheiro e nem mais ânimo. Quando bota um alimento na boca, a garganta trava e ela vomita. Na lista dos 12 mortos enviada pela Ouvidoria da SSP, os dados de Natanael aparecem com data de nascimento de 16 de novembro 1977, e não 1997. O menino morreu e continua morrendo, sendo matado.

Horas depois do fato, o governador da Bahia, Rui Costa, disse que “a orientação é que a Polícia Civil e Militar atue com a energia e a força necessária para proteger a sociedade”. “Quero chamar a atenção que nossos policiais não podem tombar no enfrentamento com o crime, principalmente com aqueles que portam escopetas, metralhadoras, pistolas. Não tem nenhum indicativo que aponte para o afastamento dos policiais. Quem age dentro da lei, como acredito que os policiais agiram, não tem nada a temer da investigação da polícia civil”. Este foi o governador falando de forma direta, sem usar a metáfora que adotaria horas adiante: a polícia é um artilheiro de frente para o gol, que precisa decidir em segundos o que fazer.

Os R$150 cobrados pelo entregador de cesta básica foram gastos em flores no caixão de Natanael

A pele explodindo em raiva

Quem conhece de perto o jeito circunspecto e sério do governador Rui Costa sabe que ele jamais teria fôlego para dizer a mesma coisa na cara de dona Marina, sentindo o abafamento do casebre alugado por R$350 ao mês, onde ela amontoa costuras na sala, nos dois quartos (um com mofo e outro com a lâmpada queimada). Ali, a um nível abaixo da rua, em um precipício de insalubridade, ela levanta a blusa sem sutiã para mostrar as costas coloridas de eczemas que ela diz ser por dormir no chão vermelho da sala, mas que até um leigo em somatização vai apontar como o ódio explodindo através da pele.

Quem vai curar a dermatite de dona Marina? Certamente não é o poder público. “Eu não recebo Bolsa Família, nem um centavo do governo, pelo contrário, pago imposto para ver a polícia matando meu filho”. É difícil imaginar como ela vai dar conta daquele acúmulo de encomendas, das blusas finas e brancas de crepe, que cerze por R$15 e depois vê revendidas por dez vezes mais na vitrine do shopping.

Dos 12 mortos por serem “assaltantes de banco”, apenas um tinha passagem pela polícia: brigas no carnaval e porte de peixeira. Além de Natanael, outros dois eram menores de idade. A 500 metros da casa de Natanael e a 800 metros da região do Horto, onde ele foi morto com mais 11 (em um paredão que alguns viram vítimas ajoelhadas e de costas) há uma agência da Caixa e um banco 24 horas em supermercado que nunca foram explodidos.

Coração crivado de ódio e indignação

Dona Marina, bem reticente, depois de desabafar o gasto dos 150 reais que usaria para pagar a cesta básica em flores que adornaram o caixão do filho-neto, decidiu abrir a corrente do portão de casa e minutos depois escancarava o coração crivado de ódio, sangrando de indignação. É quinta-feira após carnaval e ela está revoltada, tem sangue no olho, como dizem os moradores da Vila Moisés e de quase toda a periferia de salvador. O motivo foi ter ouvido um apresentador veterano de televisão mais uma vez associar os mortos do Cabula a assaltante de bancos.

“Veja se traficante de drogas dorme em um quarto desses, veja se assaltante de banco vai aceitar não ter um armário decente. Esse computador aqui eu comprei no G Barbosa, paguei de 15 vezes é só eu pegar a nota aí pra você ver”, esbraveja ela, mas está claro que pelo volume da voz ela não quer atingir os ouvidos dos jornalistas que estão ali perto. Não daqueles, mas de outros que sempre ficam de longe para emitir sua opinião.

Não há duas histórias a serem contadas.

Isso aqui não é jornalismo. Foda-se o jornalismo mesquinho com sua arte de fingir que oferece notícias, quando na verdade está apenas completando páginas, minutos de televisão, pixels de site nos espaços que sobram dos ocupados por patrocínios estatais. O jornalismo que falou em confronto, tiroteio e não questionou algum buraco de bala em viatura, quando as casas feias e pobres estavam com o reboco mal feito todo crivado de tiros de pistolas. O jornalismo patrocinado que aplaudiu o apoio explícito do governador a uma execução de baianos, argumentando que servia “para levantar o moral da tropa na véspera do carnaval”.

Os bandidos e traficantes presos. Vivos

A propósito, houve, sim, tiros contra policiais. Eles tinham sido deflagrados uma hora antes por um grupo que cuidava da boca de fumo que existe, sim, naquela localidade. Arão de Paula Santos, 22, Elenilson Santana Conceição, 22, e Luan Lucas Ferreira de Oliveira, 20, e um menor, de 15 anos, foram baleados e detidos, prestaram depoimentos e estão no presídio. Vivos. Com eles, foram apreendidos três revólveres calibre 38 e um de calibre 32, niquelado. Arão fazia o primeiro dia como olheiro e guarita, porque pretendia juntar uma grana para comprar uma moto. Com o veículo, ele queria “fazer uns corre” como motoboy.

A 700 metros de onde Natanael foi morto, um Banco 24 horas: nunca foi explodido

O tiroteio durou dez minutos, segundo o inquérito policial, e resultou em quatro feridos, que foram levados aos hospitais. O que ocorreu depois daí foi apenas covardia, do mesmo gênero filmada e aplaudida no filme Tropa de Elite.

No campo de terra batida, não se vê mais torneios e nem jogos noturnos, porque todo mundo se tranca em suas casas por volta das 19h. Também não se vêem viaturas da polícia militar no local desde que uma manifestação com a presença da Anistia Internacional ganhou as ruas no dia 10 de fevereiro.

“Eu não deixo minha casa suja assim, não. É que eu não tô com ânimo. Minha vontade é só deitar e dormir”. Dona Marina já está esquecida. Deita e não dorme, fica um filme de terror passando por sua cabeça.

Fonte: Aratu Online

 

 

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