Por Fernanda Cirenza, Manuela Azenha e Vinícius Mendes Vinícius Mendes, Revista Brasileiros
Apesar dos sorrisos estampados nesta foto, Valeria Di Pietro e Herenice Santos Cruz, cada uma a seu modo, viveram experiências pouco suaves na Casa. Aqui, elas contam por que o debate em torno da redução da maioridade penal não pode ser levado de forma leviana. Santos Cruz gosta de ser chamada de Nice Pequena ou apenas Pequena, nome que recebeu três meses antes de sair de uma unidade da Febem, atual Fundação Casa. A educadora Valeria Di Pietro foi quem a rebatizou, por causa de seu tipo físico miúdo. Foi Valeria também quem a ajudou a olhar a vida de outra maneira.
A educadora Valeria e a ex-interna Herenice se encontraram durante uma montagem de teatro com meninos da Febem. Não se separam mais – Foto: Luiza SigulemHerenice
Especial: Redução da Maioridade Penal – Somos Contra!Prestes a reconquistar a liberdade, Pequena foi chamada para participar da peça, em substituição à irmã, que era “muito agitada” e perdeu a chance de entrar para o grupo. Mas ela não queria. “Achava que aquilo não era pra mim, nunca tinha tido contato com teatro, cultura nenhuma. Mal falava o português.” Mas se sentiu pressionada e foi. Tímida e desconfiada, como Valeria a descreve.

Há pelo menos duas décadas, discute-se o assunto no Brasil. Vários projetos de lei e propostas de emenda constitucional já foram apresentados ao Congresso, mas não tiveram sucesso. No entanto, em episódio inédito, a tramitação da PEC (Proposta de Emenda Constitucional) 171/93, que reduz a maioridade penal de 18 para 16 anos e tem 38 propostas anexadas, foi admitida, no final de março, pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados. Essa comissão tem a atribuição de fazer um juízo prévio de constitucionalidade, o que significa que ela decide se a questão pode ou não tramitar pelo Congresso. Como deu sinal verde, a proposta agora está sendo analisada por uma comissão especial da Câmara, que tem até julho para fazer um relatório para votação em plenário. Se aprovada, a discussão seguirá para o Senado. Como se trata de uma PEC, a presidenta Dilma Rousseff, que já se manifestou contrária ao assunto, não poderá vetar a medida. Assim, caso a PEC passe pelo Congresso, jovens infratores de 16 anos passarão a dividir celas com criminosos de todos os gêneros. De acordo com o artigo 228 da Constituição Federal, atualmente são penalmente inimputáveis os menores de 18 anos, sujeitos às normas da legislação especial. A ideia da PEC é mudar esse trecho para “são penalmente inimputáveis os menores de 16 anos, sujeitos às normas da legislação especial”.Se isso de fato acontecer, a proposta poderá voltar ao debate, caso algum partido, organização ou entidade entrar com uma ação de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal, gesto que integrantes do PT, como os deputados federais Paulo Teixeira e Maria do Rosário, já prometeram fazer.
“A situação é grave porque em todas as circunstâncias anteriores a CCJ impediu o procedimento da PEC ou de projetos de lei, entendendo que ferem uma cláusula pétrea, que não pode ser alterada. Mas agora não vetou”, afirma o jurista Oscar Vilhena. “O Congresso pode cometer a irracionalidade de aprová-la, mas entendo que o Supremo Tribunal Federal deve impedir porque a proposta é flagrantemente inconstitucional.”
O jurista Dalmo Dallari tem esperança de que a PEC não passe – Foto: Victor Mattioni
O também jurista Dalmo Dallari concorda. Para ele, “a idade mínima de responsabilidade é fixada na Constituição e isso é direito fundamental da pessoa, e cláusula pétrea não pode ser alterada, mesmo por emenda constitucional”. Dallari acredita que não há chance de a PEC ser aprovada no Congresso. “Tenho esperança de que haja um mínimo de boa informação e bom senso entre os parlamentares para não forçar uma decisão claramente contra a Constituição, que, sabe-se, será derrubada no Supremo Tribunal.”
Paulo Sérgio Pinheiro, diplomata da ONU com mais de quatro décadas de atuação no monitoramento e mediação de conflitos nacionais e internacionais, afirma que “essa aberração só foi possível porque temos uma das piores Câmaras e um dos piores Congressos eleitos no País, depois da redemocratização”. Ele é um dos entrevistados da série que discute a redução da maioridade penal, lançada no site da Brasileiros em 2 de abril, três dias depois da aprovação da PEC 171 pela CCJ (leia a entrevista com ele na íntegra e com outros especialistas em brasileiros.com.br/4PCpl).
Contrário à medida, Pinheiro explica: “Nos países mais desenvolvidos, onde o tratamento dos adolescentes em conflito com a lei é melhor que na América do Sul, a tendência é evitar que eles entrem no sistema penal e sejam criminalizados como adultos porque as prisões sequer funcionam em termos da reabilitação e da reinserção social de adultos. No Brasil, que já é a terceira maior população carcerária do mundo, com mais de 700 mil presos, se observarmos a situação de superlotação do sistema penitenciário, onde estão essas pessoas e não cabem 300 mil, evidentemente, a proposta de redução da maioridade penal não vai atender o principal interesse da população, que é ter menos criminosos atuando em nossa sociedade”.
O jurista Oscar Vilhena é contra a Proposta de Emenda Constitucional – Foto: Divulgação
José Jesus Filho, que trabalhou 19 anos na Pastoral Carcerária de São Paulo e hoje é doutorando da Fundação Getúlio Vargas, onde investiga as transformações penitenciárias no Estado, afirma que, se aprovada a PEC, haverá um inchaço ainda maior do sistema penitenciário, provocando um colapso. “Esse é um processo autoritário, mais um componente no conjunto de violações dos direitos humanos.” Para ele, a
Constituição de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990, estão sendo ignorados e violados. “As cadeias privatizadas são verdadeiras caixas de depósitos humanos”, acrescenta.
Em abril, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, por meio do Núcleo Especializado de Situação Carcerária, divulgou relatório em que aponta superlotação de 400% em prisões estaduais. As inspeções mostram ainda que as instalações são precárias: faltam colchões e as cozinhas são “incompatíveis com as normas de higiene”. Em audiência pública na Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema Carcerário Brasileiro, na Câmara dos Deputados, o diretor-geral do Departamento Penitenciário Nacional, Renato Campos de Vitto, disse que o sistema não tem condições de internar adolescentes. Para ele, se a maioridade penal for reduzida, haverá um aprofundamento do déficit de vagas, que hoje é de 216,4 mil.
Enquanto parlamentares discutem a questão, pesquisas de opinião apontam que a população, neste momento, quer a redução da maioridade penal. De acordo com o Datafolha de abril, 87% dos brasileiros é favorável à PEC 171. Entre esses, segundo o levantamento, 74% defendem a diminuição para todos os tipos de crime. Na comissão da Câmara que analisa o tema, 14 dos 27 deputados defendem a mudança somente para jovens de 16 e 17 anos que cometerem crimes hediondos, como homicídio qualificado, latrocínio, estupro e sequestro.
De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, crimes patrimoniais, como furto e roubo (42,9% do total), e envolvimento com o tráfico de drogas (27%) constituem a maioria dos delitos praticados por menores que se encontram em instituições assistenciais do Estado. Ainda segundo o órgão, 9% dos menores internados que cumprem medida socioeducativa cometeram homicídio, 2,7% tentativa de homicídio e 2,2% latrocínio. Os dados são referentes a 2012.
Os números
Na América do Sul, apenas Guiana e Suriname punem jovens como quer a PEC 171/93. Apesar do debate, o Brasil é considerado modelo positivo na América Latina pelo Unicef, por ter sido um dos pioneiros no estabelecimento entre maioridade e responsabilidade penal, que indica qual a idade com que adolescentes podem responder por atos infracionais – a partir dos 12 anos no Brasil, conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente, aprovado em 1990.
Para a socióloga Jacqueline Sinhoretto, professora da Universidade Federal de São Carlos e coordenadora do Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos da mesma universidade, o debate precisa ser analisado também à luz da violência policial cometida contra os jovens. Coautora da pesquisa Desigualdade Racial e Segurança Pública em São Paulo – Letalidade Policial e Prisões em Flagrante, ela afirma que os jovens são mais vítimas do que autores de crimes. O levantamento analisou 734 processos de mortes em decorrência da ação policial entre 2009 e 2011, no Estado de São Paulo.
“Os dados indicam que há maior letalidade policial sobre a população negra. Ao calcularmos as taxas de mortos por cem mil habitantes, dentro de cada grupo cor/raça, é possível observar que foram mortos três vezes mais negros entre 15 e 29 anos do que brancos. O que dá para dizer que existe um racismo institucional na segurança pública.”
O também sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz, responsável pelo Mapa da Violência do ano passado, que analisa casos até 2012, reafirma esse dado em nível nacional. De acordo com o documento, os homicídios no País atingem principalmente jovens negros do sexo masculino, moradores de periferias e áreas metropolitanas dos centros urbanos.
De acordo com a pesquisa, em 2012 os números já apontavam esse cenário: 30 mil homicídios de jovens entre 15 e 29 anos. Desses, 23 mil eram negros. Fazendo a conta: 1.900 jovens negros mortos por mês, 63 por dia ou mais de dois a cada hora. O retrato dos jovens brasileiros também não é animador pela ótica do Unicef. Relatório divulgado ano passado informa que o Brasil ocupa o segundo lugar em ranking mundial em número absoluto de homicídios contra pessoas entre 10 e 19 anos, somando mais de 11 mil mortes em 2012. O País está atrás apenas da Nigéria, no continente africano. Em número proporcional à população, esse mesmo retrato melhora pouco: sexta posição, com 17 mortes para cada cem mil jovens, atrás de El Salvador e Guatemala, na América Central; Venezuela, na América do Sul; Haiti, no Caribe; e em Lesoto, na África.
“Se jogarmos esses jovens na cadeia, eles vão se tornar muito violentos e, provavelmente, irão aprofundar essa condição de infrator da lei. Um dos indicadores, por exemplo, mostra que a redução da maioridade penal vai triplicar a reincidência porque essa é a taxa atual dos infratores do sistema prisional comum. Isso já é muito grave. A reincidência dos jovens internados hoje é de 20%, enquanto a de adultos criminosos supera os 70%”, afirma Rogério Sottili, secretário-adjunto de Direitos Humanos da cidade de São Paulo.
Champinha (à esq.), um dos autores do assassinato de Felipe e Liana – Foto: Reprodução/TV
O caso Champinha
Em novembro de 2003, o brutal assassinato dos estudantes Liana Friedenbach e Felipe Caffé chocou o Brasil e reacendeu, já naquela época, o debate em torno da maioridade penal. Liana tinha 16 anos e Felipe, 19, quando foram torturados e mortos em uma zona rural de Embu-Guaçu, na região metropolitana de São Paulo, por cinco criminosos: Paulo César da Silva Marques, conhecido como Pernambucano, Antônio Caetano, Antônio Matias, Agnaldo Pires e Roberto Aparecido Alves Cardoso, o Champinha, o único menor do grupo, com 16 anos.
À época do crime, o advogado Ari Friedenbach, pai de Liana, se manifestou a favor da redução da maioridade penal. Ao longo dos anos, manteve sua opinião com algumas ressalvas. Para ele, jovens entre 16 e 18 anos que cometem crimes considerados hediondos devem ser responsabilizados criminalmente, mas encarcerados em unidades prisionais distintas das penitenciárias para adultos e com normas de conduta mais rígidas do que as praticadas na Fundação Casa. Friendenbach acredita ainda que a pena a ser aplicada deve ser a metade da que seria para um adulto.
“Minha proposta não é tratar todo mundo da mesma maneira, até porque, se isso acontecer, vão querer levar para o presídio o moleque de 16 que entrar no cinema com RG falso. Muita gente hoje me pergunta se eu esqueci a minha filha. Não. Mas minha proposta é ser rígido com quem precisa de rigidez.” Friedenbach, 54, hoje é vereador de São Paulo pelo PROS. É sua primeira legislatura pública – foi eleito com mais de 22 mil votos em 2012. “Não é possível levar a discussão de forma rasa, com base no ser a favor ou contra. Existem caminhos que podem ser mais efetivos.”
Ari Friedenbach, advogado, vereador e pai de Liana, a jovem assassinada com o namorado por um grupo de criminosos – Foto: Vinícius Mendes
