Por Thiago de Araújo, Brasil Post
Cerca de 60 projetos tramitam hoje no Congresso Nacional com o foco em um tema central: a diminuição da maioridade penal no Brasil. O mais avançado deles, a PEC (Proposta de Emenda Constitucional) de número 171, de 1993, causou muitas discussões entre aqueles que defendem a redução, e os que a julgam um equívoco para o País. A medida é polêmica por muitas razões, a começar pelo fato de que boa parte dos argumentos da PEC leva em conta passagens da Bíblia, e não estudos científicos e dados oficiais de órgãos nacionais e internacionais. Contudo, não é só isso: o problema da criminalidade é bastante complexo e, segundo especialistas, não tem uma causa isolada.

Brasil, São Paulo, SP. 24/10/2000. Internos da Febem (Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor) são vistos nas instalações da Unidade de Internação do Complexo do Tatuapé, na zona leste de São Paulo. – Crédito:MAURILO CLARETO/ESTADÃO CONTEÚDO/AE/Codigo imagem:21231
“A principal causa que contribui para dificultar a execução das medidas (socioeducativas) está na falta de estrutura adequada e pessoal capacitado, propiciando um ineficiente cumprimento da medida aplicada, o que consequentemente vem a contribuir para que adolescentes voltem a praticar delitos, como reflexos de uma medida mal executada, chegando aos elevados índices de reincidência observados no decorrer do trabalho”, diz um artigo do policial militar Arthur Luiz Carvalho de Sá, um dos muitos estudos disponíveis e que abordam o tema.
O Brasil Post compilou uma lista de 11 mitos que envolvem a discussão da maioridade penal no Brasil. Vários deles abordam citações que muitos já ouviram de alguma forma. A ideia é tirar do senso genérico algumas das alegações utilizadas pelos defensores da repressão, em detrimento ao avanço de políticas de inclusão social.
Seja a favor ou contra a diminuição da maioridade penal, vale a leitura. Acompanhe.
1 – “Julgar menor de 18 anos como adulto vai diminuir o número de homicídios”
Dados da Unicef apontam que, dos 21 milhões de adolescentes brasileiros, apenas 0,013% cometeu atos contra a vida. Vale repetir o número: 0,013%. Por outro lado, o Brasil só perde para a Nigéria quando o assunto é ver seus jovens sendo assassinados – os homicídios ceifam as vidas de 36,5% dos adolescentes do País, ante 4,8% relativo à população total.
De acordo com estudo produzido pelo professor Sérgio Adorno, coordenador do Núcleo de Estudos da Violência da USP, afirmar que a criminalidade juvenil vem crescendo e que crianças e adolescentes estão cada vez mais violentos é “um mito”. “O perfil dos adolescentes que se envolvem com atos infracionais não é distinto do perfil da criminalidade na população adulta”, escreveu.
Mais da metade das infrações de jovens infratores estão ligadas aos crimes contra o patrimônio (roubos e furtos), com base em vários levantamentos nos últimos 20 anos, seguidos pelo porte e tráfico de drogas. Os homicídios apresentam, de acordo somente com estudos de Adorno, um índice menor que 1,5%.
Outro dado relevante aqui é a existência, desde 1990, da Lei de Crimes Hediondos. Ela deveria levar a uma diminuição da criminalidade no Brasil. E, como qualquer pessoa sabe, isso não aconteceu, muito pelo contrário.
“Se colocar adultos nas cadeias de um sistema falido não resolveu o problema da violência, e essas pessoas voltam a cometer crimes após ficarem livres, por que achamos que prender cada vez mais cedo será eficiente?”, resumiu o advogado Ariel de Castro Alves, especialista em políticas de segurança pública, membro do Movimento Nacional de Direitos Humanos e ex-integrante do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda).
2 – “Eles cometem crimes e não acontece nada”
Errado. O Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), em seu artigo 112, prevê internação e medidas socioeducativas para jovens infratores. A questão repousa não na impunidade, mas sim na precariedade e ineficácia do sistema penitenciário do Brasil, e isso vale tanto para adolescentes que cometem infrações quanto para os adultos.
Segundo dados do 8º Anuário do Fórum de Segurança Pública, a população carcerária formada por menores era de 20.532 em 2012 – destes, 19.788 homens. Desse total, mais de 13 mil jovens cumpriam medidas socioeducativas em caráter de reclusão contínua, enquanto outros 5 mil em caráter provisório e mais 2 mil estando em semiliberdade.
Não é só. O déficit nas prisões brasileiras ultrapassa as 262 mil vagas, o que dá ao País a terceira maior população carcerária do mundo. Aumentar esse índice de ocupação, com a diminuição da maioridade penal e em um sistema que não tem a recuperação como sua pedra fundamental, está longe de resolver qualquer problema. Aliás, tende a agravar.
“O encarceramento em massa não está sendo eficaz para reduzir a criminalidade no Brasil”, sentenciou a defensora pública da União, Tatiana Melo Aragão Bianchini, em recente encontro na Câmara dos Deputados.
3 – “Eles matam mais do que morrem”
Esse entendimento foi recentemente endossado pelo secretário estadual de Segurança Pública de São Paulo, Alexandre de Moraes, em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura. Porém, segundo dados disponíveis, não é correta a afirmação.
Em 2014, os crimes contra a vida representaram 0,84% dos 13,4 mil processos apreciados nas varas da Infância e Juventude de São Paulo. Somados, os processos por latrocínio e homicídio totalizaram 114 casos no ano.
De acordo com o 8º Anuário do Fórum de Segurança Pública, que é baseado em documentos oficiais e considera dados de 2013 em todo o Brasil, divulgado no segundo semestre do ano passado, os homicídios respondem por 9% (1.963) do total de atos infracionais (21.744) cometidos por menores no País.
Os principais crimes cometidos por menores infratores no Brasil são os roubos (38,7%) e o tráfico de drogas (27%). Após os homicídios, aparecem, nesta ordem: furtos (4,2%), tentativa de homicídio (2,7%), e latrocínio (2,2%).
Conforme mostram os números, os crimes contra a vida são exceção. Do outro lado da equação, mais de 33 mil adolescentes brasileiros entre 12 e 18 anos foram vítimas de homicídios entre 2006 e 2012. Segundo projeções, outros 42 mil jovens poderão ter o mesmo fim entre 2013 e 2019 – um número assustador.
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o Brasil é o 4º em uma lista de 92 países quando o assunto são os homicídios de crianças e adolescentes. São 13 assassinatos para cada 100 mil jovens entre 15 e 19 anos, índice que varia de 50 a 150 vezes às registradas em países europeus.
Ainda não convencido? Não há estudos ou levantamentos que liguem a diminuição da maioridade penal com a redução da criminalidade.
4 – “A legislação está ultrapassada”
O artigo 60 da Constituição Federal de 1988 trata dos direitos e garantias individuais como “cláusulas pétreas”. Já o artigo 228, também da Constituição, define como direito do adolescente menor de 18 anos responder pelos seus atos mediante o cumprimento de medidas socioeducativas, sendo inimputável a ele ser ligado ao sistema carcerário tradicional.
Mas qualquer cláusula pétrea não pode ser modificada? Pode, desde que se realize uma nova Assembleia Nacional Constituinte, caminho que não foi o adotado pelos defensores da diminuição da maioridade penal no Congresso Nacional.
Aliás, quem quer que crianças e adolescentes sejam julgados tende a ter saudade do antigo Código de Menores, que vigorou antes do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e dava muito poder para as polícias ‘usarem a força’ para repressão de adolescentes. A Constituição de 1988 e a lei 8.069, de 13 de julho de 1990 (substituindo o Código de Menores pelo ECA) corrigiram essa lacuna, dando maior proteção aos jovens, antes desassistidos.
5 – “Eles não querem sair da vida do crime”
O ECA possibilita seis medidas socioeducativas para punição de atos infracionais, de acordo com a gravidade: 1) advertência; 2) obrigação de reparar o dano; 3) prestação de serviços à comunidade; 4) liberdade assistida; 5) inserção em regime de semiliberdade; 6) internação em estabelecimento educacional. O cerceamento da liberdade é a última alternativa.
Para manter um adolescente preso é preciso seguir três premissas: 1) tratar-se de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência à pessoa; 2) por reiteração no cometimento de outras infrações graves e 3) por descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta.
A diferença entre o ECA e o Código Penal, segundo o advogado Rubens Naves, está “no modo de acompanhamento do percurso dessa pessoa em uma unidade de internação”. E é dever do Estado “zelar pela integridade física e mental dos internos”. Como se sabe, isso não acontece, levando em conta que os índices de reincidência são altos justamente pela falha na recuperação durante o período de internação.
Previstos como ferramentas para reintegração de jovens infratores à sociedade, o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) e o Plano Individual de Atendimento (PIA) não chegam a mais de 5% dos adolescentes apreendidos no Brasil, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
6 – “Não adianta dar oportunidade”
De acordo com o Relatório Disque Direitos Humanos, de 2012, mais de 120 mil crianças e adolescentes brasileiros foram vítimas de agressões e maus-tratos diversos. Não por acaso, grande parcela dos jovens que acabam apreendidos vêm de um ambiente familiar desestruturado, com poucas oportunidades e, em geral, ausência de itens básicos como saúde e educação – de responsabilidade do Estado brasileiro.
De acordo com dados do Cadastro Nacional de Adolescentes em Conflito com a Lei (CNACL), do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), até junho de 2011 foram registradas ocorrências com mais de 90 mil adolescentes, dos quais cerca de 30 mil, segundo o CNJ, cumpriam medidas socioeducativas pelo Brasil. Levando em conta o número acima de 21 milhões de meninos e meninas entre 12 e 18 anos, é uma parcela ínfima – 0,5% – que acaba cometendo delitos. Destes, somente 0,013% cometeram crimes contra a vida.
O entendimento de que o jovem infrator é um ‘pária’ sem chance de ser reinserido na sociedade é que é equivocado. De acordo com especialistas, a adolescência é uma fase da vida de aprendizado, desenvolvimento e socialização com outras pessoas. Assim, as circunstâncias que o levaram ao crime devem ser combatidas não com mais repressão, porém com mais oportunidades.
7 – “Não pode ter pena de bandido”
A desmoralização imposta a toda pessoa que comete um crime é potencializada quando envolve menores. As péssimas condições e as seguidas denúncias de violência fizeram da extinta Febem (Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor) um exemplo clássico do que não se deve fazer quando se pensa em internar e devolver jovens recuperados à sociedade.
A instituição paulista não fazia isso, e a Fundação Casa – que a substituiu – também enfrenta sérias dificuldades para cumprir esse papel.
E não é por falta de dinheiro: o orçamento de 2014 da entidade, segundo o Ministério Público de São Paulo (MP-SP), foi de R$ 1.211.310.964,00, sendo que cada interno custou, em média, R$ 10.094,25 ao mês. O mesmo documento, que trata de uma investigação dos promotores, fala em ‘reclamações regulares de agressões e maus-tratos” e “reincidência de 54%”.
Demonstrado isso, não é de se surpreender que adolescentes que já viviam a violência quando em liberdade, tão logo adentrem unidades prisionais que deveriam ajudá-los a se recuperar, acabem reagindo com mais violência dentro dessas instituições, nas quais não são poucas as denúncias de tortura e discriminação.
Há exemplos no Brasil que comprovam que o índice de recuperação pode crescer e o de reincidência pode diminuir quando adotadas medidas socioeducativas de fato.
8 – “Se pode votar aos 16 anos, pode responder pelos seus atos”
Mundialmente, a grande maioria das nações institui a chamada responsabilidade penal absoluta aos 18 anos de idade. Há países que abrem precedentes apenas para casos específicos, como crimes hediondos, mas eles são minoria no mundo.
O comparativo entre a idade mínima para o voto opcional nas eleições brasileiras (16 anos) e a violência apenas enfatiza que, para o Estado brasileiro, é mais fácil prender do que educar, pois uma coisa não tem nada a ver com a outra. Com essa idade ele pode votar, mas não ser votado, por exemplo.
Esse entendimento também se esquece que qualquer criança e adolescente pode ser punido por infrações a partir dos 12 anos, com base no que prevê o ECA, que tem como premissa julgar que aquele menor infrator é uma pessoa em fase de desenvolvimento, e não um adulto que tem total noção de todos os seus atos.
A Fundação Abrinq divulgou, em relatório, que é equivocado o argumento dos defensores da redução da maioridade penal, que gostam de afirmar que o jovem de hoje possui maior ‘maturidade intelectual’ do que aqueles do passado. “Se ‘maturidade intelectual’ é o modo de entendimento sobre o mundo e sua autodeterminação de acordo com esse entendimento, sabe-se que, embora tenha sido ampliado o acesso à comunicação em tempo real, não se atenta para a quantidade e a qualidade das informações as quais os jovens têm acesso”.
Assim como o jovem tem o seu direito ao voto valorizado e enfatizado em discussões sobre a maioridade penal, o mesmo deve valer ao seu direito à educação, o que contribuiria para reduzir a vulnerabilidade da juventude, elemento que costuma ter relevância entre aqueles que acabam cometendo infrações antes dos 18 anos de idade.
Um estudo da professora Vania Sequeira, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, aponta políticas públicas e prevenção como principais itens que podem nortear a diminuição da criminalidade juvenil.
9 – “Reduzir a maioridade penal vai mandar um recado aos jovens”
Não, isso não vai acontecer. Especialistas dizem que o crime organizado, aquele que em várias situações recruta crianças e adolescentes – sobretudo o submundo do tráfico de drogas – vai apenas intensificar a busca de ‘mão-de-obra’ entre jovens ainda mais novos.
Fica clara aqui a noção de que crianças mais novas no mundo do crime significa mais violência, e não menos violência. Reduzir a maioridade penal não vai levar lazer, educação, estrutura familiar e serviços urbanos básicos e essenciais para as comunidades que mais necessitam.
Para se ter uma ideia, a ONU diz que, de um total de 57 países e suas respectivas legislações, apenas 17% deles adotam uma idade menor do que a de 18 anos como critério para definição de um adulto legalmente constituído. Na Alemanha, a idade penal também é fixada em 18 anos como no Brasil, e existe ainda uma instância especial para julgar jovens entre 18 e 21 anos.
A Unicef já apontou, por outro lado, que países como os Estados Unidos, que não é signatário de acordos internacionais para a maioridade penal, enfrentam o agravamento dos casos de violência, mesmo permitindo que adolescentes a partir de 12 anos possam ser julgados como adultos, incluindo a aplicação da pena de morte.
Até mesmo a presidente da Fundação Casa, Berenice Giannella, se declarou contra a redução da maioridade penal. “É uma questão que deve ser sempre discutida, mas há aspectos jurídicos que no meu entendimento reduzem a possibilidade de diminuição da maioridade penal, e acho também que a gente deve ter a consciência de que a lei sempre tem que ter uma utilidade, e eu tenho muitas dúvidas se essa lei teria a eficácia que as pessoas esperam”.
10 – “Morre tanto jovem branco quanto negro no Brasil”
Não. A grande maioria de adolescentes assassinados no País é negra, menos favorecida economicamente e, quase sempre, vive na periferia das grandes cidades brasileiras. Assim, é de se esperar que saia dessa parcela dos jovens a maioria dos menores infratores, porém isso não deve ser confundido com o pensamento de alguns setores de que “todo negro e pobre é bandido”.
Conforme mostra o levantamento do professor Sérgio Adorno, se “os pobres não são os autores, por excelência, dos crimes cometidos numa população determinada, são vítimas potenciais da violência”. E isso ocorre por serem discriminados, não terem os seus direitos protegidos, e por viverem em áreas carentes, com elevadas taxas de conflitos, os quais levam muitas vezes à violência.
11 – “A maioria quer a redução da maioridade penal”
A vontade popular é usada por parlamentares favoráveis à redução da maioridade penal. Mais de uma pesquisa apontam para índices acima dos 90% de aprovação popular quando o assunto é diminuir a idade para que jovens respondam a infrações no Brasil como adultos.
Mas essa postura, em geral, apenas ecoa o sentimento comum em outras áreas da sociedade de “colocar os problemas embaixo do tapete”, conforme explicou um estudo de mestrado da Faculdade de Ciências Humanas da Unesp.
“O jovem egresso do sistema educativo mostra ainda carregar o estigma de quem esteve envolvido com o ato infracional. Por uma determinação do ECA, estes estigmas não aparecem em um ficha criminal, porém, estão em suas formas de falar, no gestual, nos bairros periféricos onde estão inseridos, enfim, em tudo aquilo que ainda representa uma ameaça à ordem e continua os mantendo à margem da sociedade. O jovem retorna à liberdade, mas tem mantidas as condições de vida que antecederam a contravenção penal. Aí reside a causa dos índices de reincidência ato infracional”, escreveu Anihelen Gonçalves, responsável pelo mestrado.
A vontade popular não deve ser desconsiderada em sua íntegra, mas também não pode servir para maquiar um cenário que, até o presente momento, não possui dados concretos e que endossem claramente a eficácia de uma medida como a redução da maioridade penal no Brasil.