Documentário leva ao debate sobre a sociedade brasileira da primeira metade do século XX

“Menino 23” é um desses filmes que ficam na cabeça muito tempo depois que se assiste. Belisário Franca, o diretor, tem paixão pelos detalhes, como já mostrou no documentário “Amazônia eterna” (leia aqui o comentário). Juntou-se ao historiador Sidney Aguilar, que fez um trabalho também minucioso de pesquisa sobre um tema espinhoso, e ambos produziram uma peça que tanto pode servir para lembrar uma época como pode servir para refletir sobre o presente. Falo de escravidão, de trabalho infantil, de racismo, de eugenia.

Documentário Menino 23, de Belisário Franca

 

A história não é nova, o filme sim. Em 1998 uma aluna de Sydney Aguilar mencionou que havia tijolos na fazenda de sua família estampados com suásticas. Ele ficou curioso e, depois de longas pesquisas, decifrou o mistério. Segundo Aguilar, a fazenda foi usada nos anos 30 para abrigar 50 meninos que trabalharam como escravos, com todos os requintes de crueldade que vitimavam os negros antes da Abolição. Os meninos foram retirados da Fundação Romão Duarte, no Rio, escolhidos a dedo, por serem negros, por um membro da família Rocha Miranda, então proprietária da fazenda. Embora vivendo num orfanato, eles tinham escola, jogavam bola, brincavam. Lá conheceram castigos físicos e ficaram confinados.

Sydnei Aguilar pesquisou e conseguiu encontrar dois meninos daquela época, que estão vivos. Aloysio Silva era conhecido apenas pelo número, 23. Está com 93 anos e seu rosto tristonho vai sendo apresentado pelas câmeras de Belisário Franca enquanto fala:

“Fico irritado quando voltam essas coisas assim na minha cabeça”.

Memórias desagradáveis, de muita dor e tristeza. Acordavam às cinco da manhã, dormiam às 20h. Todo o tempo passavam na roça. Se alguém fizesse algo que não estivesse dentro das normas, apanhava de vara ou de palmatória. Estavam ali sob a responsabilidade de Oswaldo Rocha Miranda, um único tutor que ganhou a confiança das freiras da Romão Duarte, na época, e conseguiu tirar 50 crianças da tutela do estado.

O Brasil importou 4 milhões de escravos em três séculos. Mesmo depois da Lei Áurea, no entanto, a população libertada continuava sofrendo privações de uma vida de exclusão. O documentário traça uma linha histórica, mostrando o perfil do Brasil nos anos 30, época em que os 50 meninos foram escravizados.  Uma classe dominante que acreditava que a raça humana precisava ser purificada, e que os negros eram inferiores biologicamente. Um governante – Getúlio Vargas – que fez acordo com a Alemanha nazista e rompeu o acordo quando os interesses econômicos indicaram que o melhor era estar do lado dos Estados Unidos.

Em 1941 houve até uma Campanha pela Defesa da Raça e os clubes de eugenia começavam a se multiplicar. As fotos que procuravam mostrar o Rio de Janeiro como cidade símbolo de um país em desenvolvimento escondiam, de propósito, os motorneiros negros dos trens da Light.

Foi neste cenário que as freiras do Educandário Romão Duarte não acharam nem um pouco estranho o fato de um único homem, que nem médico nem assistente social era, querer “adotar” 50 crianças. Oswaldo Rocha Miranda assina os 50 papéis de adoção, assumindo a responsabilidade por eles. Aloysio Silva sente raiva, demonstra isso. Sydnei Aguilar encontrou mais duas pessoas que testemunham o que aconteceu naquela época. Argemiro dos Santos é hoje aposentado, mora no Sul, casado, tem filhos e netos. Chamam-no “marujo”. A mulher dele, Guilhermina, diz que quase nunca Argemiro fala sobre a infância, e revela que só agora está sabendo do que aconteceu com o marido.

A convite de Sydnei, Aloysio volta ao Educandário, onde lhe mostram uma foto antiga e ele reconhece: “Este é o Dois”. Era assim que os meninos se conheciam, apenas pelo número. “Dois”, ou José Alves de Almeida, já está morto, mas a família dele, encontrada, confirma a história de uma escravidão menos dolorosa, mas nem por isso menos traumática. O menino teria caído nas graças da família Rocha Miranda, que o levou para servi-los em casa. Tornou-se “amigo” de um dos filhos, casou-se por ali mesmo, teve filhos. Todos sempre viveram no mesmo lugar. E o “Dois” nunca viu a cor de um salário.

Em 1942, porém, os ventos começaram a soprar diferente. O Brasil juntou-se aos Aliados, tornando-se inimigo dos nazistas. Argemiro, hoje com 90 anos, já tinha conseguido fugir da fazenda num dia em que os guardas se distraíram. Viveu nas ruas durante muito tempo, alistou-se na Marinha, foi para a Europa e voltou.

Aloysio, que estava lá, conta que num determinado dia os guardas abriram as portas e mandaram os meninos – àquela época já adolescentes – saírem. A partir dali, disseram, seria cada um por si.

“Abriram a porteira e mandaram a gente sair, como se faz com gado. O que a gente ia fazer?”, pergunta-se Aloysio, que  perambulou um bocado e preferiu ficar pelas imediações, onde mora até hoje, em Paranapanema.

A família Rocha Miranda não quis falar no documentário. Mas preparou um vídeo (veja aqui) onde vários amigos e ex-empregados da Fazenda dão depoimentos negando que os meninos tenham sido tratados como escravos ou tenham sofrido torturas físicas. O fato de eles serem reconhecidos por números, porém, fica claro nos depoimentos. O fato de terem sido trazidos do Educandário (Casa da Roda) também é confirmado. A iniciativa aparece como generosidade de uma das pessoas da família, já que teria livrado as crianças de um futuro de privações pelo fato de terem sido abandonadas pelos pais.

Toda a história é triste. Os castigos físicos piorariam a situação, claro. Mas o fato de o Educandário ter permitido a adoção, por uma única pessoa, dá conta, no mínimo, de uma legislação falha. E do direito de dispor da vida de crianças desvalidas.  Quantos outros casos de adoção inapropriada teriam acontecido naquela época?

O desejo de “purificação da raça”, pano de fundo para muitas atrocidades cometidas na primeira metade do século XX, merece ser revisitado e discutido porque fez parte da história. Não de um país inteiro, me recuso a pensar que todas as pessoas pensavam assim. Mas de uma grande parte da sociedade. Trazer a discussão para os dias atuais pode ser um bom exercício para repensar o racismo que ainda hoje é muito presente.

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