‘Aquele sangue era meu’, diz mãe que viu filho morto em favela do Rio

Por Alfredo Mergulhão, Folha de S.Paulo

Tinha acabado de descer o morro do Querosene quando ouvi dois tiros. Continuei andando até o mercado para comprar três batatas, uma cenoura e pão, para fazer uma canja para o meu caçula, que estava doente.

Na volta, enquanto subia a escadaria, o pessoal da comunidade começou a dizer que meu filho tinha sido baleado [a polícia ainda não esclareceu sobre de onde partiu a bala; mais cedo, houve confronto entre PMs e traficantes em uma favela vizinha]. Ainda no caminho, soube que era o Carlos Eduardo.

Subi correndo, esbarrando nas pessoas, desesperada para ver se o Dudu ainda estava vivo. Mas, quando cheguei, vi o corpo dele no chão, na porta de casa, tampado por um lençol. Retirei o pano para ver seu rosto. Só que não aguentei olhar. Ele estava morto, muito machucado. Gritei muito, xinguei, fiquei desesperada. Ninguém subiu o morro para socorrer meu filho. Ele nem chegou a ser levado para o hospital.

Doeu demais ver o sangue do meu filho derramado. Aquele sangue era meu.

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A catadora Sheila da Silva fala sobre a morte do filho Carlos Eduardo, baleado em favela do Rio. Foto: Pablo Jacob/ Agência O Globo

Fiquei tão revoltada que passei o sangue do meu filho no rosto. Ali, naquela hora, não tinha mais medo de nada, da polícia, da morte. Minha vida já estava destruída.

Eu nasci e fui criada no Querosene. Todo mundo no morro conhece minha história. Todo mundo sabe o que passei para para criar meus filhos.

Tive 14 filhos: Luiz José, 26, Aluísio, 25, Bruno, 24, Gabriela, 23, Luiz Henrique, 21, Carlos Eduardo, 20, Marcela, 17, André, 12, Ezequiel, 4, e Gabriel, 3.

Não me lembro da idade de dois filhos, Natasha e Marquinhos, que foram criados por outra família. Não tive condição de cuidar deles na época e entreguei para adoção.

Perdi ainda dois outros filhos. A Vitória morreu com um mês de vida. O Max José morreu aos 12 anos de pneumonia. E agora mataram o Dudu.

Sempre fiz de tudo para não faltar comida aos meus filhos. Já trabalhei como diarista e cheguei a pedir esmola em frente à Igreja de São Sebastião, na Tijuca.

Ganho dinheiro hoje em dia como catadora de papel e de latinha no centro do Rio. Moro com meus seis filhos mais novos em uma casinha de um quarto.

O Dudu dormia na sala junto com seus irmãos. Meu filho não era bandido. Se fosse, eu falaria. Mataram um inocente.

E, desde a noite de sexta-feira, estou procurando pelo corpo dele. No sábado pela manhã, fui ao IML no centro do Rio para resolver tudo e enterrar meu filho. Mas o corpo dele não estava lá [o IML do Rio está temporariamente interditado]. Ninguém soube me informar para onde ele foi levado.

Na noite de sábado, um funcionário me ligou para dizer que o corpo estava no IML de Nova Iguaçu (município da região metropolitana do Rio). Ele disse que a gente poderia buscar o corpo só na segunda-feira. Três dias depois da morte. Estou esse tempo todo sem dormir.

Quando cheguei ao IML de Nova Iguaçu, disseram que o corpo tinha sido devolvido para o Rio. É muito descaso. Fazem isso porque a gente é preto e desdentado.

Voltei para o Rio e finalmente reconheci o corpo do meu filho. Agora, vou descobrir quanto vai custar o enterro e pedir ajuda aos meus vizinhos no morro. A comunidade prometeu fazer uma vaquinha [o jovem foi enterrado na tarde desta terça].

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