Um ano vagaroso para os direitos humanos

Por Cecília Garcia, do Promenino, com Cidade Escola Aprendiz

Foi um ano de lama. A lama cobriu a superfície do Rio Doce e se infiltrou nas pálpebras de ribeirinhos que observaram tristes os peixes pararem de nadar. A lama também atolou meninos; eles não se mexeram mais. Como escreveu a jornalista Eliane Brum, eram meninos da periferia que estavam jogando bola, parados na calçada de suas casas, quando a polícia mais violenta do mundo os assassinou. Um ano vagaroso para os direitos das mulheres, dos negros, dos homossexuais e das crianças. Um ano vagaroso para os direitos humanos.

Poucas expressões causaram tanta polêmica em 2015 quanto este jogo de palavras, que vem à boca junto com estereótipos e lugares-comuns: direitos humanos são para humanos, direitos humanos são coisas de bandido. “Gozar de direitos humanos é ter acesso a um pacote mínimo para preservar sua dignidade. O direito a ter uma religião, a andar sem ser incomodado, a ter uma casa, uma família, um nome ou uma nacionalidade. Tudo isso também são direitos humanos. Mas as pessoas só conseguem relacionar a expressão a infratores”, explica Leonardo Sakamoto, jornalista e fundador da ONG Repórter Brasil.

Desmistificar o que são os direitos humanos é especialmente árduo em um ano no qual discursos polarizados tomaram as ruas e as redes sociais. As eleições brasileiras de 2014 e seus resultados acirraram falas extremistas. Em conjunto com a eleição do Congresso mais conservador da história, o movimento se manifestou em peso. Eduardo Cunha, eleito em fevereiro presidente da Câmara dos Deputados, foi capaz de reacender pautas à luz dos desejos democráticos.

Segundo Sakamoto, a população está representada no campo ideário da Câmara, mas não da forma adequada: “O Congresso Brasileiro representa bastante a sociedade com relação ao pensamento hegemônico. Sabe-se que 93% da população de São Paulo é a favor da redução da maioridade penal. Mas não se pode legislar pela maioria, até porque a democracia é um regime em que a maior parte é acatada desde que também seja respeitada a dignidade da minoria”.

Conservadorismo como reação
Para Jessica Carvalho Morris, diretora-executiva da Conectas Direitos Humanos, o levante do conservadorismo é também uma reação às movimentações populares e à continuidade de suas lutas pela obtenção de direitos: “Como ativista de direitos humanos, acredito que se trata de uma reação à ascensão econômica de uma camada marginalizada da sociedade, que começa a ocupar espaços que antes eram exclusivos de uma camada pequena da população, e ao empoderamento de outras minorias, como negros, mulheres e LGBTs”.

Embora o conservadorismo atinja, em especial, a luta dos setores progressistas, deve-se entender que ele não é, como Sakamoto apontou, um posicionamento monolítico. “A sociedade brasileira tende a ser conversadora com direitos coletivos e progressistas com direitos individuais. Somos brandos nos direitos civis e políticos, onde o Estado não interfere, como o direito à religião e à expressão de ideias, e o direito de votar. Com relação aos direitos sociais, econômicos e culturais, como quando o Estado interfere e garante distribuição de terra ou assegura a plena liberdade do corpo da mulher, somos contra”.

Ao assumir a presidência da Câmara, Cunha desenterrou projetos de lei engavetados que dão vazão à ala conversadora e provocam bandeiras progressistas. Ele recriou uma comissão para rediscutir o conceito da família com o Projeto de Lei 6583, conhecido como o Estatuto da Família, o qual determinou que a família só poderia ser composta por um homem e uma mulher. Ele também aprovou o Projeto de Lei 5069/2013, que fere o direito das mulheres vítimas de estupro de serem submetidas legalmente a um aborto.

No tocante aos direitos da infância e da adolescência, também houve retrocessos. À luz da comemoração de 25 anos da ECA, estatuto que protege crianças e adolescentes do trabalho infantil e garante seus direitos fundamentais, a Câmara aprovou duas vezes a PEC 171/93, que pretende diminuir a maioridade penal de 18 para 16 anos em casos de crimes hediondos.

“Se estivessem de fato comprometidos com a redução da violência, os parlamentares não estariam empenhados em criminalizar a juventude pobre, negra e das periferias, mas justamente o contrário, aprovando medidas para protegê-las porque essa juventude é a principal vítima da violência”, diz Jéssica. A PEC está parada no Senado.

Seguindo em frente
Quais pautas de direitos humanos avançaram em 2015? Para Sakamoto, em sua esmagadora maioria, foram pautas retroativas, que visam combater ataques da ala conservadora: “As vitórias pontuais foram na questão do combate ao trabalho escravo. Também temos as mulheres indo às ruas para derrubar o projeto de lei que dificultaria o aborto. E por fim, a vitória dos alunos secundaristas contra a reorganização escolar em São Paulo”. Ele também aponta o fim do financiamento privado de campanhas políticas como uma vitória ativa e importante.

Luciana complementa, citando outras conquistas: “Temos algumas pautas importantes a caminho, como a nova Lei de Migrações, que substituirá o atual Estatuto do Estrangeiro com um tratamento mais igualitário aos migrantes que adotam o Brasil como novo lar. Também o fim da revista vexatória aos familiares de presos é um tema que vem avançando de modo positivo, tanto na esfera estadual quanto na federal. Outro avanço essencial é o Projeto de Lei que coloca fim aos chamados ‘autos de resistência’, uma oportunidade para reduzir a letalidade policial”.

Com um fim de ano conturbado política e economicamente, os prognósticos para 2016 são, de certa forma, realistas: “Os avanços na área de direitos humanos dependem muito de diálogo. Só que o diálogo está travado em nome de uma polarização estúpida, seja pela incapacidade de debater do Congresso Nacional, seja por conta da violência propagada por grupos de terror digital. Dá para imaginar que 2016 será um ano igualmente difícil para os direitos humanos”, prevê Sakamoto.

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